sábado, dezembro 10, 2005

Contraponto



Acabei de ler Contraponto, de Aldous Huxley. O que me causou maior encantamento na obra, em primeiro lugar, foi a técnica da narrativa. Está certo, os que me conhecem já sabem, e os que não conhecem saberão agora que este que aqui escreve não possui nenhum conhecimento mais do que superficial a respeito de técnicas de narrativa. Já havia lido a respeito da obra, obviamente, até porque este não é o primeiro livro do Huxley que me chega em mãos. Mas confesso ser um energúmeno em matéria de teoria literária, apesar de leitor voraz. Até então não tinha bem certeza a respeito do que vinha a ser a tal técnica do contraponto. O que sabia era o que já havia lido em depoimentos, inclusive do Erico Verissimo, que por sinal foi o primeiro a traduzir o Point Counter Point para o português, e também adotou essa técnica no livro Caminhos Cruzados, o qual ainda não tive o prazer de ler.

Bem, mas o que me encantou na tal técnica do contraponto? Ou melhor, o que me levou a ter certeza de que após ler o livro realmente entendi o que vem a ser o contraponto? Para responder a essa pergunta, nada melhor do que brindar-lhes com uma sintética definição.

Imagine uma orquestra sinfônica executando uma peça clássica. Mesmo que você não tenha uma audição muito acurada, isto é, mesmo que você, assim como eu, não possua “ouvido de músico”, tenho certeza de que facilmente conseguirá perceber que os diversos instrumentos parecem percorrer caminhos diversos. Está bem, talvez o exemplo seja pouco esclarecedor para quem não goste de música clássica. Imaginemos...imaginemos não. Suponho que se você não gosta de música clássica, ao menos de rock há de gostar. Ora, não pode um ser humano repudiar concomitantemente Mozart e Beatles! Fiquemos com os Beatles. Escolhamos uma música...deixe-me ver: She Came in Through the Bathroom Window. Bem, quero que você preste atenção em como guitarra, baixo, bateria e vocal percorrem rumos diferentes, cada um numa direção. Mas fica evidente que embora percorram rumos diferentes, o percurso de todos não é aleatório, mas sim planejado. São linhas que se estendem no plano em direção a um ponto específico. Se não houvesse esse ponto, teríamos cacofonia e não harmonia musical.

Em Contraponto, Huxley faz a mesma coisa. Os capítulos e os trechos destes são construídos de uma maneira que à primeira vista parecem estar nos levando a rumos completamente desconexos dentro do espaço da narrativa. Mas, na verdade, o que ocorre é que as temáticas de cada trecho estão inter-relacionados. O capítulo em que isto me apareceu de forma mais reveladora foi o XXXIV. Transcrevi um trecho do último parágrafo deste e do primeiro parágrafo do XXXV:


“(...)Ao primeiro contato o seio redondo estremeceu; ele tinha seus terrores particulares, dentro da felicidade geral de Beatrice, dentro de sua sensação de segurança. Mas a mão espírita repetiu a carícia – mais outra e outra vez – pacientemente, suavemente, sem alarme, até que o seio, tranqüilizado e por fim ansioso, desejou a sua volta; e todo o corpo de beatrice fremiu, vivo, sob a irradiação dos desejos do seio. E na escuridão as eternidades se prolongaram.

CAPÍTULO XXXV

No dia seguinte, em lugar de gemer a cada retorno da dor, o menino começou a gritar – a soltar gritos após gritos, cada vez mais agudos, repetidos com uma regularidade quase digna dum mecanismo de relógio, durante um tempo que pareceu a Elinor uma eternidade.(...)”


Capítulo XXXIV: prazer. Capítulo XXXV: dor . Em comum: sensação de eternidade; as sensações tão intensas que parecem estender-se eternamente. Ficou claro?

Além do estilo de narrativa, Contraponto é genial quanto ao enredo. A estória se passa no período do entreguerras, fim dos anos vinte. As personagens ou são membros da burguesia inglesa ou freqüentam o seio desta. Até aqui percebemos a influência da linguagem musical na narrativa: por mais heterogêneos que possam parecer os personagens em termos de convicções ideológicas ou estilos de vida, percebemos uma evidente confluência entre os contrários. O livro, assim como A Montanha Mágica, de Thomas Mann, foi um alerta para a iminência de uma segunda guerra mundial. A total ausência de valores éticos, a derrocada da moral cristã, os primeiros efeitos da agressão desenfreada ao meio ambiente, a crise das ideologias políticas, os extremismos pró-massas ou pró-individualismo...em todos esses aspectos o livro é profético.

Quase cem anos depois o livro ainda é assustadoramente atual. Aconselho Contraponto a todos que querem conhecer um pouco mais da alma humana.