domingo, outubro 30, 2005

Tributo



Uma série de fatores contribuíram para minha paixão pelos livros. A biblioteca iniciada por meu avô paterno a espalhar-se por vários cômodos de minha casa em Jaguarão - e, por força das circunstâncias e das contingências, reduzida drasticamente quando da mudança da família para Pelotas-, sempre teve para mim valor inestimável. Desde tenra idade, mesmo quando ainda não podia mergulhar no mundo da leitura, os livros produziam-me forte encantamento, aguçando-me a curiosidade, cuja saciedade ainda não me era permitida em função do analfabetismo. Quando as letras deixaram de ser para mim um mistério, os mistérios dos livros passaram a ser para mim um deleite. Júlio Verne, Monteiro Lobato, Agatha Christie, Isaac Azimov, Carl Sagan......junto com meu pai, foram eles que me despertaram o amor pelos livros. No entanto, nesse período, tal amor ainda era marcado pela infidelidade e, até, pela promiscuidade. Os livros, nessa época, eram para mim uma paixão, assim como também o eram o futebol, a bicicleta, os filmes de horror, os brinquedos e a televisão. Tive uma “infância normal”, e dentro da normalidade de uma infância de cidade pequena, os livros eram para mim apenas mais um atrativo. Minha memória é péssima, mas creio que tinha uns doze anos de idade quando numa noite fria, preenchida pelo silêncio melancólico das ruas da pequena cidade fronteiriça, enquanto todos em casa já dormiam, abri preguiçosamente um certo livro do qual já ouvira falar - e muito - e me pus despretensiosa e vagarosamente a ler:

“Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno caindo na solidão”........


O Tempo e o Vento é a obra literária que mais me marcou até hoje. Não quero com isso transparecer a opinião de que se trata do melhor livro, do mais bem escrito, ou do que me causou maior deleite estético. Não é o que quero dizer ao manifestar o que esse livro significou para mim. A importância de O Tempo e o Vento, assim como de Incidente em Antares, Noite, Olhai os Lírios do Campo e O Prisioneiro, é que graças a eles passei a ter na literatura, ao lado da música, a minha principal fonte intelectual de transcendência. Minha história como leitor se resume a fase pré e pós Erico Verissimo. Antes do Erico, os livros eram para mim uma curiosidade; a partir dele, a literatura converteu-se na religião que nunca tive.

Acordei hoje e lembrei-me que ainda não havia escrito nada para homenagear os 100 anos do Erico. Que estas reminiscências sirvam de tributo ao mais importante escritor da vida deste leitor inveterado.

O Espelho

O Espelho


Ao gritar do despertador, Pedro saltou instintivamente de sua cama aconchegante. Para ele todas as manhãs eram iguais, exceto às quartas-feiras.

Ah!, as manhãs de quarta-feira. Nada se igualava a elas. O enternecimento provocado pelo dar-se conta de que faltavam apenas dois dias para o final de semana. A alegria do relembrar as façanhas do final de semana anterior. Tudo é felicidade nas manhãs de quarta-feira.

Pedro calçou as alpargatas e dirigiu-se ao banheiro. Abriu a torneira e, com as mãos em forma de concha, apanhou um pouco d´água para lavar o rosto. No desgrudar das pálpebras abriu os olhos. E no pestanejar nervoso do despertar induzido, um grito estarrecedor ecoou pelo pequeno apartamento.

Pedro olhara-se no espelho, e no espelho não enxergara Pedro. Pedro e o espelho. O espelho límpido, cristalino, a refletir a parede amarelada dos azulejos sujos. Espanto. Pedro tornou a levar as mãos ao jato-contínuo. Apanhou mais água e, nervoso, jogou-a novamente no rosto. Afoito, abriu os olhos e pestanejou; esfregou-os desesperadamente, mas o espelho continuava igual, com a mesma empáfia a refletir a parede imunda, negando-se a enxergá-lo.

- Mas que merda é essa! – exclamou, irritadiço.

Olhou para os pés, para as pernas, apalpou o membro adormecido e a barriga flácida. Subiu para o tórax e com raiva esbofeteou-se a face. Sentiu a dor da bochecha ferida, dos dentes entrechocados. Esbofeteou de novo, para ter certeza de que estava acordado. Estava.

Respirou fundo e rumou para o chuveiro. Ajustou a temperatura e sentiu a água gelada a queimar-lhe as costas. Gritou, soqueou a parede e agüentou firme, com expressão de raiva. Deixou a água escorrer e acumular-se no piso. Olhou para a poça d´água e , manifestando um alívio profundo, viu seu reflexo destorcido. Entusiasmado pulou para frente da pia, mirou-se no espelho e ....a mesma parede amarelada. Beliscou-se, chutou o armário, berrou com a dor do dedo quebrado.

- Mas que merda é essa!

Com o coração em disparada, saiu do banheiro. Secou-se na toalha, percebeu os cabelos desalinhados. Colocou as cuecas. Vestiu calça e camisa. Calçou os sapatos. O dedo latejando, o cérebro fervilhando. Acomodou o relógio de pulso. Respirou fundo, juntou os papéis e jogou-os na pasta. Dirigiu-se para a cozinha. Aqueceu o leite; despejou duas colheres de café; chacoalhou o copo; despejou açúcar; chacoalhou de novo e levou o líquido à boca. Gosto amargo. Largou o copo sobre a mesa e voltou para o banheiro.

Entrou lentamente, trancou a porta e largou a pasta no chão. Respirou fundo e deu um grito. Amarrou a cara, estalou os olhos e mirou desafiadoramente o impávido pedaço de vidro quadrangular.

- Seu filho duma puta! – exclamou, hilariamente. Hilário, gargalhou. Gargalhou durante dois minutos, contorceu-se de tanto gargalhar. Gargalhou histericamente, como nunca gargalhara na vida. Gargalhou, gargalhou, até sentir a barriga doer de tanta convulsão histérica. E então amarrou a cara novamente. Lentamente pegou o pente no armarinho e penteou os cabelos desalinhados. Penteou-se, com o peito estufado, tentando demonstrar superioridade. Com os olhos cravados no espelho, penteou-se por vários minutos, com ar desafiador, como o toureiro diante do touro na arena lotada. Largou o pente e pegou a escova de dentes. Abaixou a cabeça, colocou lentamente o creme dental, espiando o inimigo de soslaio. Levou a escova à boca e escovou. Escovou durante uns dois minutos, esboçando um sorriso forçado, tentando demonstrar indiferença. Escovou, escovou, bochechou, cuspiu, escovou novamente. O ritual higiênico perdurou por uns vinte minutos. E durante aqueles vinte minutos o espelho manteve o seu desdém. Para o espelho, nada existia à sua frente. Para o espelho, somente a parede imunda importava.

Com o hálito refrescado, Pedro enxaguou a escova e depositou-a novamente na caneca de vidro. Sem titubear, abriu a porta do armarinho e guardou o creme dental. Lentamente, assoviando uma música irreconhecível, tornou a fechar a porta. Estático, voltou a mirar o objeto desdenhoso. Percebeu que havia borrifado algumas partículas de água e creme dental. Delicadamente levou a mão em direção ao espelho, deslizando-a suavemente até desfazer as nódoas de sujeira. Sentiu a superfície aquecida, uma quentura estranha para um objeto frio numa manhã gelada como aquela. Mas de estranhezas aquela manhã já estava além da conta, e não seria a quentura do espelho a razão dos acontecimentos que se seguiram.

Pedro, Pedro e o espelho. O espelho a ignorar Pedro, Pedro a desconhecer Pedro. No relógio já se faziam oito e meia da manhã. Na repartição a jornada de trabalho já se iniciara, no finge-que-faz-não-faz rotineiro, no diz-que-sabe-não-sabe de sempre. E Pedro ali, a contemplar o espelho que, ignominioso, recusava-se a refletir.

A irritação que se ausentara voltou num rompante, quando Pedro percebeu que as horas corriam soltas e o relógio já anunciava nove horas.

– Nove horas, desgraçado! – exclamou numa fúria até então sublimada.

A mente fervendo, a face ruborizada, os dentes cravados no lábio inferior, o gosto de sangue na boca seca, o punho cerrado, os olhos fechados e..... Num soco certeiro o espelho desfez-se em pedaços. Com a cabeça baixa, Pedro regozijou. Nos miles de pedaços a que se resumira, o objeto voltou a refletir. Nos fragmentos de vidro, Pedro, aliviado, voltou a contemplar a sua face.- Ah, as inesquecíveis manhãs de quarta-feira! – exclamou o legista.