terça-feira, fevereiro 21, 2006

Deus, a humanidade e os chatos


Compartilho da opinião de Jack Miles, segundo a qual Deus criou a humanidade por sentir repentinamente que a solidão lhe era insuportável. O mais interessante nessa história é o fato de Deus ter criado o homem e a mulher a sua imagem e semelhança, ou seja, apesar de ter sentido que seria insuportável viver – ou simplesmente ser – por toda a eternidade convivendo apenas consigo próprio, Deus revelou possuir uma personalidade narcisista. Deus, apesar de sentir-se um ser extremamente chato para se conviver isolado na ilha deserta da eternidade, no momento em que cria novos seres semelhantes a Ele, manifesta ao mesmo tempo ter um elevado, quase patológico amor pela própria imagem.
Ainda não terminei o livro do Jack Miles ( Deus, uma biografia), mas após ler as primeiras cem páginas, na qual ele faz um exercício de interpretação literária do Gênesis na Bíblia hebraica, chego a conclusão de que já consigo resolver a uma das mais complexas questões já formuladas pela metafísica: Por que Deus criou a humanidade?
Nunca imaginei que essa pergunta tivesse uma resposta tão simples: Deus criou a humanidade porque precisava de companhia. Simples, tão simples como a resposta dada por todo crente aos que lhe questionam o porquê de existir um Deus: Deus tem que existir, porque toda causa tem um efeito, e o Universo é um efeito complexo demais para ter sido obra do simples acaso. Até mesmo a ciência tem referendado essa resposta: alguns biólogos têm afirmado que a complexidade da vida atesta ter sido ela projetada previamente por uma grande inteligência.
Nunca questionei a inteligência de Deus, até porque ela é óbvia. No entanto, confesso ter ficado assombrado ao dar-me conta de que só estamos aqui porque Deus, em meio ao nada absoluto, teve uma forte crise existencial. Confesso que também senti um pouco de dó de Deus ao imaginar como ele deve ter sofrido durante essa atroz crise existencial, sem que tivesse algum psicólogo ou psiquiatra para ajudá-lo a reencontrar-se consigo mesmo. Mas felizmente, Deus, demonstrando por que é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, o onipotente e o onisciente ou, simplesmente, o único Deus, tem um magnífico insight e descobre que a única saída para a sua aflição é encontrar-se consigo mesmo, ou seja, voltar-se para si mesmo e replicar-se.
Felizmente, para nós, Deus não era um suicida em potencial. Graças ao acaso Deus é imortal (Acaso foi o único termo profundamente filosófico que encontrei para fundamentar o fato de Deus ser imortal. Me perdoem pela limitação lingüístico-filósfica.). E graças a imortalidade de Deus não fomos abortados.
Não há dúvida, está lá, no Livro dos Livros: somos a imagem e semelhança de Deus. Somos o espelho de Deus e ele o nosso espelho.
Apesar de achar-se, num primeiro momento, um tremendo chato, Deus acaba apercebendo-se de que apesar de chato ele era um, digamos, um chato legal. Se somos a imagem e a semelhança dEle, com certeza Ele deve nos achar tremendamente chatos, mas como a si próprio, indubitavelmente Ele nos ama. Seguindo essa linha de raciocino, sinto-me autorizado, por mim e por Ele, a considerá-Lo chato também. Confesso que já fiz-Lhe uma série de admoestações: Pôxa, precisava ter criado o Bush, o Tony Blair, o zoológico humano, o Luxemburgo, o Garotinho, o FHC, o Serra e o Alckmin, o Olavo de Carvalho, a música sertaneja, o pagode, o PT, o PFL e o PSDB, o cinismo na política, o mensalão etc? Está certo, ter criado o Mozart, os Beatles e os Stones, o Vinícius, o Drummond, o Erico, o Saramago , o Ítalo Calvino, o Quintana e o Bob Dylan não foi nada chato.
Em suma, somos frutos da crise existencial de um Ser que num repente percebeu que seria muito mais chato viver isolado na sua chatice do que compartilhá-la conosco. Graças a Ele somos, e graças a Ele somos chatos. Graças a Ele, podemos achá-Lo chato, desde que não deixemos de amá-Lo. Podemos, inclusive, nos acharmos chatos uns ao outros, desde que não façamos dessa chatice motivo para nos aniquilarmos – Será que os padres, os aiatolás e os rabinos ainda não se deram conta disso. Talvez seja esse o motivo de Deus atormentá-los tanto. Mas essa história ainda não teve um desfecho, e os capítulos principais inclusive não constam da Bíblia.
Ame ao próximo como a ti mesmo, Ele disse – isso Ele disse quando fez-se carne, não podemos esquecer disso. Mas temos demonstrado que a chatice às vezes é insuportável, e esquecemo-nos dessa frase. Na verdade, acho que não nos esquecemos nunca dela. Na verdade, toda agressão ao outro é meio sado-masoquista. É muito chato perceber que aquele chato é semelhante a você. Temos que conviver com isso. A recíproca chatice é verdadeira: suportemo-la.
Por isso, quando um chato tornar-se insuportavelmente chato, faça como Deus ao reconhecer a própria chatice: olhe-se no espelho, mas não o quebre, ainda que do espelho surja a imagem de um tucano falando sobre ética na política.