domingo, outubro 30, 2005

O Espelho

O Espelho


Ao gritar do despertador, Pedro saltou instintivamente de sua cama aconchegante. Para ele todas as manhãs eram iguais, exceto às quartas-feiras.

Ah!, as manhãs de quarta-feira. Nada se igualava a elas. O enternecimento provocado pelo dar-se conta de que faltavam apenas dois dias para o final de semana. A alegria do relembrar as façanhas do final de semana anterior. Tudo é felicidade nas manhãs de quarta-feira.

Pedro calçou as alpargatas e dirigiu-se ao banheiro. Abriu a torneira e, com as mãos em forma de concha, apanhou um pouco d´água para lavar o rosto. No desgrudar das pálpebras abriu os olhos. E no pestanejar nervoso do despertar induzido, um grito estarrecedor ecoou pelo pequeno apartamento.

Pedro olhara-se no espelho, e no espelho não enxergara Pedro. Pedro e o espelho. O espelho límpido, cristalino, a refletir a parede amarelada dos azulejos sujos. Espanto. Pedro tornou a levar as mãos ao jato-contínuo. Apanhou mais água e, nervoso, jogou-a novamente no rosto. Afoito, abriu os olhos e pestanejou; esfregou-os desesperadamente, mas o espelho continuava igual, com a mesma empáfia a refletir a parede imunda, negando-se a enxergá-lo.

- Mas que merda é essa! – exclamou, irritadiço.

Olhou para os pés, para as pernas, apalpou o membro adormecido e a barriga flácida. Subiu para o tórax e com raiva esbofeteou-se a face. Sentiu a dor da bochecha ferida, dos dentes entrechocados. Esbofeteou de novo, para ter certeza de que estava acordado. Estava.

Respirou fundo e rumou para o chuveiro. Ajustou a temperatura e sentiu a água gelada a queimar-lhe as costas. Gritou, soqueou a parede e agüentou firme, com expressão de raiva. Deixou a água escorrer e acumular-se no piso. Olhou para a poça d´água e , manifestando um alívio profundo, viu seu reflexo destorcido. Entusiasmado pulou para frente da pia, mirou-se no espelho e ....a mesma parede amarelada. Beliscou-se, chutou o armário, berrou com a dor do dedo quebrado.

- Mas que merda é essa!

Com o coração em disparada, saiu do banheiro. Secou-se na toalha, percebeu os cabelos desalinhados. Colocou as cuecas. Vestiu calça e camisa. Calçou os sapatos. O dedo latejando, o cérebro fervilhando. Acomodou o relógio de pulso. Respirou fundo, juntou os papéis e jogou-os na pasta. Dirigiu-se para a cozinha. Aqueceu o leite; despejou duas colheres de café; chacoalhou o copo; despejou açúcar; chacoalhou de novo e levou o líquido à boca. Gosto amargo. Largou o copo sobre a mesa e voltou para o banheiro.

Entrou lentamente, trancou a porta e largou a pasta no chão. Respirou fundo e deu um grito. Amarrou a cara, estalou os olhos e mirou desafiadoramente o impávido pedaço de vidro quadrangular.

- Seu filho duma puta! – exclamou, hilariamente. Hilário, gargalhou. Gargalhou durante dois minutos, contorceu-se de tanto gargalhar. Gargalhou histericamente, como nunca gargalhara na vida. Gargalhou, gargalhou, até sentir a barriga doer de tanta convulsão histérica. E então amarrou a cara novamente. Lentamente pegou o pente no armarinho e penteou os cabelos desalinhados. Penteou-se, com o peito estufado, tentando demonstrar superioridade. Com os olhos cravados no espelho, penteou-se por vários minutos, com ar desafiador, como o toureiro diante do touro na arena lotada. Largou o pente e pegou a escova de dentes. Abaixou a cabeça, colocou lentamente o creme dental, espiando o inimigo de soslaio. Levou a escova à boca e escovou. Escovou durante uns dois minutos, esboçando um sorriso forçado, tentando demonstrar indiferença. Escovou, escovou, bochechou, cuspiu, escovou novamente. O ritual higiênico perdurou por uns vinte minutos. E durante aqueles vinte minutos o espelho manteve o seu desdém. Para o espelho, nada existia à sua frente. Para o espelho, somente a parede imunda importava.

Com o hálito refrescado, Pedro enxaguou a escova e depositou-a novamente na caneca de vidro. Sem titubear, abriu a porta do armarinho e guardou o creme dental. Lentamente, assoviando uma música irreconhecível, tornou a fechar a porta. Estático, voltou a mirar o objeto desdenhoso. Percebeu que havia borrifado algumas partículas de água e creme dental. Delicadamente levou a mão em direção ao espelho, deslizando-a suavemente até desfazer as nódoas de sujeira. Sentiu a superfície aquecida, uma quentura estranha para um objeto frio numa manhã gelada como aquela. Mas de estranhezas aquela manhã já estava além da conta, e não seria a quentura do espelho a razão dos acontecimentos que se seguiram.

Pedro, Pedro e o espelho. O espelho a ignorar Pedro, Pedro a desconhecer Pedro. No relógio já se faziam oito e meia da manhã. Na repartição a jornada de trabalho já se iniciara, no finge-que-faz-não-faz rotineiro, no diz-que-sabe-não-sabe de sempre. E Pedro ali, a contemplar o espelho que, ignominioso, recusava-se a refletir.

A irritação que se ausentara voltou num rompante, quando Pedro percebeu que as horas corriam soltas e o relógio já anunciava nove horas.

– Nove horas, desgraçado! – exclamou numa fúria até então sublimada.

A mente fervendo, a face ruborizada, os dentes cravados no lábio inferior, o gosto de sangue na boca seca, o punho cerrado, os olhos fechados e..... Num soco certeiro o espelho desfez-se em pedaços. Com a cabeça baixa, Pedro regozijou. Nos miles de pedaços a que se resumira, o objeto voltou a refletir. Nos fragmentos de vidro, Pedro, aliviado, voltou a contemplar a sua face.- Ah, as inesquecíveis manhãs de quarta-feira! – exclamou o legista.

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