domingo, fevereiro 24, 2008

A renúncia

Agora há pouco, após o banho matinal, apanhei na minha caixa de correio a edição desta semana da revista Veja. Na capa, em que se destaca a cor negra, uma foto de Fidel Castro, de perfil. A manchete:"Já vai tarde".

A renúncia de Fidel Castro é o fato mais marcante da semana. Talvez, num exercício arriscado de futurologia, divida com a eleição do novo presidente norte-americano o título de principal fato de 2008.

Durante 49 anos de pode absoluto, Fidel amalgamou a imagem de santo e demônio. Líder da heróica Revolução de 1959, conseguiu, até o fechamento dos cofres soviéticos, construir uma nação com fantásticos índices de qualidade social. Por qualidade social entenda-se: excelente sistema de saúde público, com acesso a toda população; educação de qualidade, com erradição total do analfabetismo; desemprego zero. Para quem vivia em Cuba antes da Revolução, ou para qualquer habitante do terceiro mundo que sobrevive com as dificuldades cruéis da miséria extrema, viver em um país como esse equivaleria a mudar-se para o Paraíso. Comida, saúde, emprego, educação, é o mínimo necessário para a sobrevivência. O problema é esse, o mínimo não basta.

Se o mínimo já não era o bastante, após o cruel embargo norte-americano a Cuba, e sobretudo ao fim do auxílio financeiro soviético, sequer isso Fidel conseguia assegurar aos cidadãos cubanos. A saúde, que fora excelente, hoje é simplesmente boa. O analfabetismo continua erradicado. Já a comida, essa começa a escacear. Ainda não há fome em Cuba, mas a variedade de gêneros alimentícios é cada vez menor.

O lado demoníaco de Fidel, ainda que em muito inferior a de tantos outros ditadores que aterrorizaram a humanidade no século XX, revelava-se justamente na tática empregada para calar aqueles que não se contentavam apenas com o mínimo. Para estes, Cuba era uma prisão. Para os que se negavam a sujeitar-se ao poder instituído, a prisão perpétua ou o paredón era o destino inevitável. Casos como o dos boxeadores cubanos que se evadiram da delegação nos jogos pan-americanos do Rio de Janeiro são exemplares do quanto o governo de Fidel pode ser cruel para aqueles que não o aceitam.

Não existe liberdade em Cuba. E sem liberdade, não há dignidade. Sem liberdade, o ser humano não consegue realizar a plenitude da sua personalidade. Sem liberdade, há apenas subsistência. Vegetativa subsistência. E para Fidel, a liberdade sempre foi uma ameaça à Revolução. Por isso, viver em Cuba, mesmo que com comida (escassa), médicos e remédios de graça (estes, não se sabe até quando), não pode ser considerado um paraíso. Sem dúvida que, no todo, é melhor que antes da Revolução; mas não é o suficiente.

Fidel renunciou ao poder por problemas de saúde. Enquanto mantiver a capacidade de raciocínio, desempenhará o papel de eminência parda de um governo que, ao menos enquanto Raul permanecer no cargo, não se prenuncia como muito diferente do que é hoje. Diferente seria se representasse a ruptura dos grilhões, e desde que isso não representasse uma prostituição aos interesses norte-americanos.

Cuba não é o paraíso. Cuba não é livre. Mas a realidade de Cuba poderia ser muito pior. Por isso a manchete da Veja mais uma vez é tendenciosa e estúpida. Fidel não foi tarde. Fidel foi na hora certa, desde que com isso haja liberdade, sem libertinagem.


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