Confesso que minha primeira leitura do Don Quijote teve um forte quê de heresia, uma vez que feita a partir de uma tradução para o português. Os amantes da obra sentir-se-ão fortemente motivados a lançarem-me na fogueira após esta confissão; ou no mínimo afirmarão que eu não consegui capturar na sua integridade a beleza estética da obra, pois por melhor que seja a tradução, esta diminui em muito a riqueza de conteúdo que possui o original. Tratando-se de El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, essa perda é maior ainda – como me dei conta ao reler a obra em espanhol.
Quando me propus a escrever este texto, havia lido a obra uma vez e em português, como dito acima. Quando comecei a articular idéias a fim de começar a escrever, resolvi tomar vergonha na cara e reler a obra, desta vez direto do espanhol. Tenho certeza que esta segunda leitura foi mais rica do que a primeira, e me propiciou maior segurança para fazer uma abordagem livre da obra.
Considerado o melhor livro de todos os tempos, a obra de Cervantes causou-me profundo impacto: das leituras que fiz vislumbrei a presença de duas dicotomias: sanidade e insanidade;sabedoria formal, derivada dos livros e sabedoria prática, derivada das experiências da vida.
São essas dicotomias que me despertaram a atenção ao destrinchar a personalidade dos dois personagens principais da obra.
De um lado temos Don Quijote: leitor voraz, dotado de uma vasta cultura conquistada através dos livros. De outro temos Sancho Panza: um camponês de vida simples, analfabeto.
O Quijote, embora culto, com um forte arcabouço de informações retirada dos livros, acaba se deixando levar pelas estórias que lia, mostrando-se incapaz de discernir entre realidade e imaginação.
Sancho, por outro lado, por saber-se ignorante, sem estudo, admira a inteligência e a cultura do amo; apesar dessa admiração, e de achar-se pequeno ante a sabedoria do Quijote, percebe logo a insanidade deste, não compartilhando de suas visões delirantes.
Após ler tantos livros de cavalaria, o Quijote chegou a conclusão de que o que o mundo mais precisava era de cavaleiros-andantes, motivo pelo qual resolve lançar-se em busca de aventuras e de fama. Já nas primeiras aventuras, quando chega a uma simples venda e imagina estar chegando em um magnífico castelo, quando encontra duas putas e as trata como se fossem donzelas e, sobretudo, quando atira-se vorazmente com sua lança contra os moinhos-de-vento, que pensava serem gigantes, nos parece evidente a sua insanidade. Mas se louco era, dava-se conta de sua insanidade, embora não a admitindo, como ocorre no episódio dos moinhos, no qual após de forma tortuosa dar-se conta de que estes realmente eram moinhos-de-vento e não gigantes, afirma a Sancho que fora o feiticeiro Freston que transformara os gigantes em moinhos, com a finalidade de humilhá-lo. O mesmo acontece quando avista a sua dulcíssima Dulcinéia Del Toboso: quando percebe que esta não é uma linda donzela, mas uma gorda e feia camponesa, atribui a fealdade desta a um encantamento perpretado por Freston, a fim de afastá-lo de sua amada.
No prólogo do livro, Cervantes manifesta como um dos propósitos da obra realizar uma sátira dos romances de cavalaria, demonstrando o poder de alheamento que a leitura destes produzia.
Cervantes nos diz que a loucura do Quijote seria conseqüência de sua fixação pelos romances de cavalaria - leitor voraz desse gênero literário, acaba sendo contagiado por ele, fazendo-se cavaleiro-andante.
Como contraponto ao herói maluco, temos Sancho Panza, o fiel escudeiro que tenta infrutiferamente trazer o amo de volta à realidade.
Apesar de a priori Sancho ser uma espécie de “lanterna” do Quijote, na medida em que não se deixa contagiar pelas suas visões delirantes, ao mesmo tempo se deixa iludir pela promessa deste de que após vencer terríveis batalhas seria recompensado com uma ilha, da qual tornar-se-ia governador.
Essa aparente contradição propicia a formulação de duas questões: Seria o Quijote realmente louco ou seria ele apenas um indivíduo cansado de sua vida monótona, em virtude da qual se deixa influenciar pelas estórias cheias de aventura e romance dos livros que lia? Se Sancho Panza dava-se conta da loucura do seu amo, por que se deixava levar pela promessa de que seria recompensado com o governo de uma ilha e que enriqueceria através disso?
Quanto à primeira questão, a interpretação que fiz me leva a responder que o Quijote não era louco, isto é, não era mentalmente enfermo. A loucura do Quijote, na minha opinião, é a loucura que contagia os sonhadores, aquele sentimento de inconformidade com os aspectos inaceitáveis da realidade. A loucura do Quijote é a vontade de transcender ao real em busca da realização plena da sua individualidade; é o inconformar-se com as coisas e mandar às favas os convencionalismos e as certezas. A História nos deu uma infinidade de Quijotes: Quando em 1959 uns poucos revolucionários cubanos desembarcaram na Sierra Maestra a fim de derrubar o governo de Fulgêncio Batista, não agiram eles como Don Quijotes? E Che Guevara tentando tomar o poder na Bolívia, com uma tropa de sete homens, também não se assemelhava ao Quijote? Hugo Chavez não seria um Don Quijote venezuelano ? E João Pedro Stédile, sem entrar no mérito de suas atividades, também não se assemelha ao Quijote quando afirma que a luta do MST agora é contra o lucro e o capital?
Um dos Quijotes que construí após a leitura da obra é este: um inconformado, um indivíduo preocupado apenas com o sonhar, sem preocupar-se com os limites que a realidade impõe ao seu sonho.
Mas também me permiti fazer uma outra interpretação, respondendo à questão de uma outra maneira, considerando sobretudo o propósito de Cervantes em satirizar os romances de cavalaria. Sob esse outro prisma, a loucura do Quijote pode ser real , apresentando-se como um produto do poder alienante daquele gênero literário – Após ficar tanto tempo enfurnado em suas leituras, a sua vida se confunde com as ficções que lia; esquece-se da realidade, ou deliberadamente opta por negligenciá-la e passar a viver unicamente a vida que os livros lhe revelam.
Essa segunda interpretação é bastante atual em tempos em que os padrões sociais são autoritariamente ditados pela mídia – mídia eletrônica, sobretudo. Sob esse prisma, a loucura do Quijote era manifesta, consubstanciada na sua incapacidade de adaptar-se à sociedade, em razão da qual constrói um mundo imaginário, cujo cenário é construído a partir dos romances-de-cavalaria.
Mas a riqueza da obra me levou a conferir relevância a um outro aspecto bastante marcante na leitura que fiz: as profundas transformações por que vão passando os dois personagens ao longo da estória.
À medida que se desenrola a narrativa, sobretudo a partir da segunda parte, o iletrado e inculto Sancho Panza vai demonstrando uma sabedoria extraordinária para um simples camponês. Extraí do Capítulo LI um trecho em que, já na condição de governador da Ínsula Barataria – que na realidade de ilha não tinha nada – Sancho é chamado a solucionar um problema jurídico que havia surgido na comunidade:
“Señor: un caudaloso rio dividia dos términos de un mismo señorio ( y esté vuesa merced atento, porque el caso es de importancia, y algo dificultoso); digo, pues, que sobre este rio estaba una puente, y al cabo della una horca, y una como casa de audiencia, en la cual, de ordinario habia cuatro jueces, que juzgaban la ley que puso el dueño del rio, de la puente y del señorío, que era en esta forma: Si alguno pasare por esta puente y del señorío, de una parte á otra, ha de jurar primero adónde, y á qué va; y si jurare verdad, déjenle pasare; y si dijere mentira, muera por ello ahorcado, en la horca que allí se muestra, sin remision alguna. – Sabida esta ley, y la rigurosa condicion della, pasaban muchos; y luego, en lo que juraban, se echaba de ver que decian verdad, y los jueces los dejaban pasar libremente. Sucedió pues, que, tomando juramento á un hombre, juró y dijo, que para el juramento que hacia, que iba á morir en aquella horca que allí estaba, y no á otra cosa. Repararon los jueces en el juramento, y dijeron: Si á este hombre le dejamos pasar libremente, mintió en su juramento, y, conforme á la ley, debe morir; y, si le ahorcamos, él juro que iba á morir en aquella horca, y, habiendo jurado verdad, por la misma ley debe ser libre. – Pídese á vuesa merced, señor gobernador, qué harán los jueces de tal hombre; que aun, hasta ahora, están dudosos y suspensos: y habiendo tenido noticia del agudo y elevado entendimiento de vuesa merced, me enviaron á mí á que suplicase á vuesa merced, de su parte, diese su parecer en tal intricado y dudoso caso.”Á lo que respondió Sancho:”Por cierto, que esos señores jueces que a mí os envian, lo pudieron haber excusado, porque yo soy un hombre que tengo mas de mostrenco que de agudo; pero, con todo eso, repetidme otra vez el negocio, de modo que yo lo entienda; quizá podria ser que diese en el hito.” Volvió otra y otra vez el preguntante á referir lo que primero habia dicho, y Sancho dijo: “Á mi parecer, este negocio en dos paletas le declararé yo; y es así: el tal hombre ¿ jura que va á morir en la horca, y si muere en ella juró verdad, y por la ley puesta merece ser libre, y que pase la puente, y si no le ahorcan juró mentira, y por la misma ley merece que le ahorquen? – Así es como el señor gobernador dice, dijo el mensajero; y, cuanto á la entereza y entendimiento del caso, no hay mas qué pedir ni qué dudar. – Digo yo pues, ahora, replicó Sancho, que deste hombre, aquella parte que juró verdad la dejen pasar, y la que dijo mentira la ahorquen, y desta manera se cumplirá al pié de la letra la condicion del pasaje. – Pues, señor gobernador, replicó el preguntador, será necesario que el tal hombre se divida en partes, en mentirosa y verdadera; y si se divide, por fuerza ha de morir, y así, no se consigue cosa alguna de lo que la ley pide, y es necesidad expresa que se cumpla con ella. – Venid acá, señor buen hombre, respondió Sancho: este pasajero que decís, ó yo soy un porro, ó el tiene la misma razon para morir que para vivir y pasar la puente; porque, si la verdad le salva, la mentira le condena igualmente; y siendo esto así, como lo es, soy de parecer que digais á esos señores que á mí os enviaron, que pues están en un fil las razones de condenarle ó asolverle, que le dejen pasar libremente, pues siempre es alabado mas el hacer bien, que mal; y esto lo diera firmado de mi nombre, si supiera firmar: y yo, en este caso, no he hablado de mio, sino que se me vino á la memoria un precepto, entre otros muchos, que me dio mi amo Don Quijote la noche antes que viniese á ser gobernador desta ínsula, que fue, que cuando la justicia estuviese en duda, me decantase y acogiese á la misericordia; y ha querido Dios que ahora se me acordase, por venir en este caso como de molde. – Así es, respondió el mayordomo; y tengo para mí, que el mismo Licurgo, que dio leyes á los lacedemonios, no pudiera dar mejor sentencia que la que el gran Panza ha dado; y acábase con esto la audiencia desta mañana, y yo daré órden cómo el señor gobernador coma muy á su gusto.”
Neste episódio, assim como em vários outros, Sancho revela uma extraordinária habilidade no desempenho de suas funções de governante. Há, é evidente , uma forte influência dos ensinamentos que Don Quijote lhe transmite ao longo de sua jornada. Mas no entanto, o fato de Sancho conseguir pôr em prática os ensinamentos transmitidos pelo amo denotam o desenvolvimento de uma louvável sapiência e um acurado senso de justiça.

O Quijote já era um cinqüentenário no começo do livro. Apesar disso, sua vida parece desprovida de riqueza, haja vista que mora em sua casa com uma governanta e uma sobrinha, o que leva a crer que não teve maiores experiências pessoais.
À medida em que a narrativa vai se aproximando do final, vai começando a dar-se conta de seus delírios, vai recuperando a razão, inclusive não se deixando iludir quando provocado pelo duque e a duquesa que lhe deram hospedagem. Vivenciando novas experiências, vai dando-se conta de que a realidade difere em muito do mundo da ficção
Desse desenlace da trama, me permiti elaborar uma nova questão: Don Quijote realmente recupera a razão no final da estória ou apenas percebe que não lhe era permitido sonhar e, em razão disso, resolve deixar de fantasiar e conformar-se com a realidade monótona que lhe era imposta?
Um clássico só se torna clássico se provocar mais questionamentos do que revelações. Uma obra que se apresente ao leitor de forma pronta e acabada, sem permitir maiores divagações interpretativas, não é capaz de ser imortalizada. O prazer da leitura consiste na possibilidade de ir além do texto, de propiciar ao leitor exercer uma atividade criadora igual à desenvolvida pelo autor da obra. Uma obra torna-se imortal quando seduz o leitor de tal maneira que este sente vontade de lê-la e relê-la por diversas vezes; e a cada leitura ele descobre um novo universo que não havia percebido quando da leitura anterior.
El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha é uma dessas obras cuja imortalidade é irrefutável, o que resta evidente no momento em que comemoramos os 400 anos da publicação de sua primeira parte. Li o Quijote duas vezes, e a cada leitura construí essas duas figuras que descrevi nestas poucas linhas. Tenho certeza que na próxima leitura descobrirei um novo Quijote, certeza esta que sem dúvida me estimulará a relê-lo muitas outras vezes.
Um comentário:
EL INGENIOSO HIDALGO DON CHICOTE DE LAS PAMPAS
SIMPLESMENTE EXAURIDORAS LINHAS COM SINTETICIDADE CLAREZA DE CONSTRUÇÃO MAESTRIA DE RACIOCINIO E UMA BRILHANTE PERCEPÇÃO DE MUNDO E VIDA EM UMA OBRA QUATROCENTENÁRIA COMO ESTA MARAVILHA DA LINGUA ESPANHOLA DENTRE OUTRAS QUE TANTO ADMIRO E TENHO GOSTO.
PARABÉNS POR "SU ESCRITA DESENVUELTA Y MUY INGENIOSA" ERMANO CHICO
ALEMÃO
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