sexta-feira, março 11, 2011

Terremoto


No dia 1º de novembro de 1755, um terrível terremoto, seguido de uma gigantesca tsunami destruiu a cidade de Lisboa, matando de 10 a 15 mil pessoas (Há relatos de que teriam morrido 90 mil). A população da capital portuguesa era estimada em 250 mil pessoas. No dizer do historiador gaúcho Voltaire Schiling, "poucas catástrofes geológicas geraram tantas indagações e lançaram tantas dúvidas no homem moderno".

O escritor, ensaísta e filósofo Voltaire, na sua sátira Cândido ou O Otimismo, descreveu o impacto da catástrofe:

  — Metade dos passageiros, enfraquecidos, agoniados com a inconcebível indisposição em que a instabilidade de um navio deixa a todos os nervos e humores do corpo, agitados em sentidos contrários, não tinham nem mesmo forças para inquietar-se com o perigo. A outra metade soltava gritos e rezava; as velas estavam rotas, os mastros quebrados, o navio fendido. Trabalhava quem pudesse, ninguém se entendia, ninguém comandava, o anabatista auxiliava um pouco a manobra; achava-se no convés; um marinheiro furioso bate-lhe rudemente e derruba-o sobre as pranchas, mas, com o golpe que lhe deu, caiu ele próprio para fora do navio, ficando suspenso a um toco de mastro. O bom Jaques corre em seu auxílio, ajuda-o a subir e, com o esforço que faz, é precipitado no mar, sem que o marinheiro fizesse o mínimo gesto para salvá-lo. Cândido aproxima-se, vê o seu benfeitor que reaparece um momento à tona e é tragado para sempre. Quer lançar-se ao mar, mas Pangloss lho impede, provando-lhe que a enseada de Lisboa fora feita expressamente para afogar o anabatista. Enquanto o provava a priori, o navio parte-se ao meio e todos perecem, com exceção de Pangloss, de Cândido e do brutal marinheiro que afogara o virtuoso anabatista; o facínora nadou até a margem, onde Pangloss e Cândido arribaram, agarrados a uma tábua.
     Depois que se refizeram um pouco, encaminharam-se para Lisboa; restava-lhes algum dinheiro, com o qual esperavam salvar-se da fome, depois de haverem escapado à tempestade.
     Mal entravam na cidade, chorando a morte do benfeitor, quando sentem o solo tremer sob os seus pés; o mar, furioso, galga o porto e despedaça os navios que ali me acham ancorados. Turbilhões de chama e cinza cobrem as ruas e praças públicas; as casas desabam; abatem-se os tetos sobre os alicerces que se abalam; trinta mil habitantes são esmagados sob as ruínas. Assobiando e praguejando, dizia consigo o marinheiro: – Muito há que aproveitar aqui. – Qual poderá ser a razão suficiente deste fenômeno? – indagava Pangloss.
     Chegou o último dia do mundo! exclamava Cândido. O marinheiro corre imediatamente para o meio dos destroços, afronta a morte em busca de dinheiro, acha-o, embriaga-se; depois de cozinhar a bebedeira, compra os favores da primeira rapariga de boa vontade que encontra sobre as ruínas das casas e em meio dos mortos e moribundos. Enquanto isto, Pangloss puxava-o pela manga. – Meu amigo – dizia-lhe, – isto não está direito, ofendes a razão universal, empregas muito mal o teu tempo. – Com os diabos! – responde o outro, – sou marinheiro e nasci em Batávia; marchei quatro vezes sobre o crucifixo, em quatro viagens que fiz ao Japão; e ainda me vens com a razão universal!
     Alguns estilhaços de pedra haviam ferido Cândido, que se achava estendido no meio da rua e coberto de destroços.
     — Ai! – dizia ele a Pangloss, consegue-me um pouco de vinho e de óleo, que estou morrendo.
     — Este terremoto não é novidade nenhuma – respondeu Pangloss. – A cidade de Lima experimentou os mesmos tremores de terra no ano passado; iguais causas, iguais efeitos: há com certeza uma corrente subterrânea de enxofre, desde Lima até Lisboa.
     — Nada mais provável – respondeu Cândido, – mas, por amor de Deus, arranja-me óleo e vinho.
     — Como, provável? – replicou. – Sustento que é a coisa mais demonstrada que existe.
     Cândido perdeu os sentidos, e Pangloss trouxe-lhe um pouco de água de uma fonte vizinha.
     No dia seguinte, havendo encontrado alguma provisão de boca em meio aos escombros, repararam um pouco as forças. Em seguida puseram-se a trabalhar como os outros para auxiliar os habitantes escapados à morte. Alguns cidadãos por eles socorridos deram-lhes o melhor almoço que poderiam encontrar em tais circunstâncias. Verdade que a refeição era triste; os convivas regavam o pão com lágrimas. Mas Pangloss consolou-os, assegurando-lhes que as coisas não poderiam ser de outra maneira: “Pois tudo isto – dizia ele – é o que há de melhor. Pois, se há um vulcão em Lisboa, não poderia estar noutra parte. Pois é impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem”.
     Um homenzinho de preto, familiar da Inquisição, que se achava a seu lado, tomou polidamente a palavra e disse:
     — Pelo visto, o senhor não crê no pecado original; pois, se tudo está o melhor possível, não houve nem queda, nem castigo.
     — Peço humildemente perdão a Vossa Excelência – disse Pangloss ainda mais polidamente, – pois a queda do homem e a maldição entravam necessariamente no melhor dos mundos possíveis.
     — O senhor não crê então na liberdade? – perguntou o familiar.
     — Vossa Excelência me desculpará – disse Pangloss; – a liberdade pode subsistir com a necessidade absoluta; pois era necessário que fôssemos livres, porque enfim a liberdade determinada...
     Pangloss estava no meio da frase, quando o familiar fez um sinal de cabeça para o seu lacaio, que lhe servia vinho do Porto.

     Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para prevenir uma ruína total do que oferecer ao povo um belo auto-de-fé; foi decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimonial, era um infalível segredo para impedir que a terra se pusesse a tremer.
   
As imagens do terremoto e da gigantesca tsunami que devastou uma região do Japão nesta sexta-feira voltam a despertar no homem o sentimento de total impotência ante a força da natureza. "Vivemos no melhor dos mundos possíveis", dizia Pangloss, parodiando Leibniz, no clássico de Voltaire.



Um comentário:

Unknown disse...

Este assunto Fez-me lembrar que logo que aprendi a ler li na SELETA o acontecimento de Lisboa e que passei muito tempo sem dormir direito,sonhando que fugia das ondas!... L