sábado, maio 27, 2006

Pelas veredas da lingüística I: o que é norma culta da língua?

Nesta segunda-feira farei uma prova dentro do processo seletivo para o Curso de Pós-Graduação em Letras da UFPEL, especialização em Leitura e Produção Textual. Um dos textos indicados se chama Por que “norma”?Por que “culta”?, extraído da obra A norma oculta, de autoria do professor de Lingüística da UnB Marcos Bagno. No texto, como o título indica, o autor faz um questionamento acerca do que vem a ser norma culta da língua, tratando, inicialmente, de delimitar qual o conceito que os dicionários apresentam para o termo norma, quando associado à língua. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa apresenta duas rubricas para definir o termo: na primeira, seria o conjunto de preceitos estabelecidos na seleção do que deve ou não ser usado numa certa língua, levando em conta fatores lingüísticos e não lingüísticos, como tradição e valores socioculturais (prestígio, elegância, estética etc.); na segunda, seria tudo o que é de uso corrente numa língua relativamente estabilizada pelas instituições sociais. O professor chama a atenção para uma evidente contradição entre os dois conceitos: como pode um único termo significar tanto um “preceito estabelecido” como algo que é de “uso corrente”? Os gramáticos costumam destacar o fato de que do mesmo substantivo norma derivam dois adjetivos: normal e normativo. Normal seria o que é de uso corrente, de tendência geral e habitual, aferido estatisticamente a partir da realidade objetiva, do comportamento dos agentes sociais. Normativo remete a um ideal estabelecido a partir de juízos de valor, são preceitos elaborados a partir de uma reflexão consciente, através de critérios subjetivos, no intuito de atender a uma finalidade previamente designada. Seja nos jornais, seja na televisão, nas gramáticas, nos manuais de redação etc, o termo norma costuma vir acompanhado do adjetivo culta. Ocorre que ante a duplicidade de significados que apresenta o termo norma, conforme demonstrado, quando se fala em “norma culta” queremos nos referir ao que é normal, ao que é de uso habitual ou ao que deveria ser, a um preceito imposto de cima para baixo? Pelo senso comum, “norma culta” tem o significado de única maneira correta de se expressar através da língua, seja através da fala como da escrita. Mas com fundamento em que se estabelece esse preceito de certo ou errado? Os gramáticos recorrem à literatura, aos clássicos, aos escritores corretos e gramáticos esclarecidos como fonte de legitimidade do que vem a ser a escrita e a fala correta. No entanto, esse ponto de vista evidencia-se como essencialmente autoritário, desprovido de critério científico, pois, afinal de contas, quem define, e como define, se um determinado escritor é ou não correto? Bem como se determinado gramático é esclarecido? Outra definição para norma culta consiste no falar e escrever conforme falam e escrevem as pessoas cultas na época atual. Mas quem são essas pessoas cultas? Se formos buscá-los na literatura, na literatura atual, constataremos que ela tem influência mínima sobre a sociedade brasileira, a qual, como é notório, lê muito pouco, ou melhor, é avessa à cultura livresca. Além disso, a literatura de hoje se encontra cada vez mais influenciada pela linguagem da televisão, do rádio, pela linguagem coloquial. Com base nessa constatação, concluímos que a norma culta da língua, sob o prisma normativo, não tem sustentação. Se voltarmos à literatura para buscar esse padrão culto, teríamos que recorrer aos clássicos, cujo estilo, além de ter pequena influência sobre o estilo literário contemporânea, é manifestamente anacrônico, o que, sob o ponto de vista da lingüística, que estuda a língua como um fenômeno em constante mutação, é inadmissível. Outra tentativa de definir norma culta, no sentido de uso corrente da língua, peca por seu evidente caráter preconceituoso, além de, assim como o outro sentido, não ter qualquer respaldo científico. Norma culta da língua seria a maneira como falam e escrevem as pessoas cultas. O Professor Marcos Bagno discorre acerca do adjetivo culta, encontrando nele um “longo processo de impregnação ideológica que tem de ser criticado”. Se escrever ou falar de determinada maneira é culta, as demais maneiras seriam incultas. Ocorre que tanto a sociologia quanto a antropologia afirmam que não existe nenhum ser humano que não esteja vinculado a uma cultura. Assim, o termo culto só poderia ser entendido como derivado da forma de escrita e fala utilizadas por determinadas classes sociais, as classes sociais que têm o privilégio de ter acesso à educação formal, ou seja, a minoria da população. Ainda que se aceite esse critério preconceituoso e elitista, a falta de metodologia científica para estabelecê-lo é gritante, uma vez que as estatísticas não conseguem evidenciar uma forma única de falar e escrever entre os brasileiros que tiveram acesso à educação formal. Pelo contrário, é possível encontrar pessoas socialmente desprestigiadas no Norte do Brasil que falam e escrevem segundo a norma-padrão determinada pela Gramática, assim como nos depararmos, no Sul do Brasil, com pessoas com curso superior completo e que “infringem” determinadas normas gramaticais que corresponderiam aos preceitos estabelecidos como cultos. A complexa relação entre língua e sociedade, como se vê, torna injusto estabelecer critérios de certo e errado para o uso da língua segundo os padrões vigentes.

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