sábado, maio 13, 2006

Retalhos Filosóficos II: Rosseau

Entre uma CPI e outra, para aqueles que, assim como eu, não conseguem deixar de se questionar acerca dos fatos que nos são narrados pelo noticiário político, apresenta-se como excelente leitura a obra Do Contrato Social, de Jean-Jacques Rousseau. O livro foi escrito há 249 anos, mas, como tantos outros clássicos da filosofia política, deve ser lido e relido para saber-se que o homem, desde que saiu do inseguro estado de natureza e resolveu celebrar um pacto com os demais, no intuito de, pretensamente, conseguir viver uma vida mais segura e harmônica, na verdade acabou ingressando num estado bem mais perigoso do que outrora. Está certo, todos nós sabemos que esse tal pacto social deve ser interpretado não como um fato histórico, mas como uma metáfora que está para a ciência política assim como o Big Bang está para a astrofísica, com a diferença que este, ao menos no estágio em que se encontra a física, tem data e horário registrados.

Rosseau explica o pacto social da seguinte maneira: “Contemplo os homens chegados ao ponto em que os obstáculos danificadores de sua conservação no estado natural superam, resistindo, as forças que o indivíduo pode empregar, para nele se manter; o primitivo estado cessa então de poder existir, e o gênero humano, se não mudasse de vida, pereceria”. Sintetizando grosseiramente o que disse o filósofo suíço, arrisco-me a dizer que o homem, enquanto selvagem, agia somente em direção ao que o seu instinto mandasse e, para essa ação, contava unicamente com a sua força física. Num dado momento, o homem descobre que a sua força física estava longe de, sozinha, lhe garantir a sobrevivência. Em suma, ao perceber-se fraco, o homem, em seu primeiro lampejo de racionalidade, conclui que para a sua própria conservação o melhor negócio seria aliar a sua força à dos demais homens, instituindo, por meio de um hipotético contrato, a sociedade civil.

A idéia, sob o ponto de vista da originalidade, é genial. Ocorre que, em termos de eficácia, conforme o próprio Rosseau diagnostica, passou ao largo da perfeição.

O que escreveria Rousseau, mais especificamente sobre a sociedade brasileira, nestes tempos de sanguessugas e valerioduto? Acho que, muito embora não tenha tido o deleite intelectual de se deparar com um Marcos Valério, um Bispo Rodrigues ou um José Dirceu, era a respeito do Brasil que ele se referia ao proferir a seguinte sentença:


“De dois modos sobrevém a dissolução do Estado: primeiro, quando o príncipe cessa de o administrar segundo as leis, e usurpa o poder soberano; sucede então notável transtorno, e que não o governo, mas o Estado se constringe, quero dizer que o grande Estado se dissolve e que se forma outro naquele, só composto dos membros do governo, e que só é para o resto do povo seu dono e seu tirano; de sorte que no instante em que o governo usurpa a soberania, o pacto social se rompe, todos os simples cidadãos tornam a entrar de direito na sua liberdade natural e, apesar de forçados, não têm obrigação de obedecer.

Sucede o mesmo quando os membros do governo separadamente usurpam o poder, que só em corpo devem exercer. Grandíssima infração das leis, que produz a maior desordem!Então há, por assim dizer, tantos príncipes quanto magistrados, e o Estado não menos dividido que o governo perece ou muda de forma.

Quando o Estado se dissolve, o abuso do governo, qualquer que seja, toma o nome comum de anarquia; mas se quereis distinções, a democracia degenera em oclocracia, e a aristocracia em oligarquia; acrescentaria que a realeza degenera em tirania...chamo tirano o usurpador o usurpador da autoridade real, e déspota o usurpador do poder soberano.”

Desse último parágrafo, concluímos que qualquer tese que pretenda definir o governo brasileiro como aristocrático, na realidade, sob um ponto de vista rousseauniano, se apresenta equivocada. Isso fica mais evidente quando lemos como Rosseau define a aristocracia: “ ...a ordem mais natural, e melhor, é que os mais sábios governem a multidão, quando há certeza de que eles hão de governar em proveito dela, e não deles”. Ora, não precisamos fazer maiores elucubrações para nos darmos conta de que não somos governados pelos mais sábios. Não, não quero com isso induzi-los a crer que a minha opinião é a de que o Executivo e o Legislativo são conduzidos por um bando de energúmenos. Pelo contrário, as notícias que chegam de Brasília nos atestam que temos muitos sábios conduzindo os negócios públicos. Ocorre que desses sábios, a grande maioria utiliza a sapiência em proveito próprio, e não em nosso proveito. A pequena minoria, talvez por não ser tão sábia como aparenta, mas que parece não compactuar com a sapiência safada dos demais, não consegue se fazer ouvir. Donde resta evidente que, assim como nos demais países, o nosso governo, consoante os ensinamentos de Rosseau, é oligárquico. Sim, oligárquico pois, afinal de contas, se o Congresso e o Executivo vivem num constante tráfico de influências, e sendo ambos compostos por uma diversidade de partidos, resta evidente que PMDB, PT, PFL, PTB,PSDB, PSB,PP,PC do B,PL,PDT, etc constituem a oligarquia que infesta os corredores do governo federal.

Mas Rosseau vai mais além, e nos possibilita mais uma constatação, senão vejamos:
“O princípio da vida política está na autoridade do soberano (o povo): o poder legislativo é o coração do Estado, o poder executivo é o cérebro que dá movimento a todas as partes. O cérebro pode cair em paralisia, e o indivíduo continuar a viver. Um homem fica imbecil e vive; mas, apenas cessam as funções do coração, o animal expira”.


Leio o parágrafo acima da seguinte maneira: é mais fácil expurgar a corrupção do Poder Executivo do que do Legislativo. O caso Collor corrobora essa afirmativa, e serve também de fundamento para a conclusão de que, apesar de termos derrubado Collor, a máfia continuou lá, isto é, quem derrubou Collor? O Congresso. Quem , de fato, comanda o Congresso nos dias de hoje? Os mesmos que derrubaram Collor no passado. Conclusão: o Legislativo, quando não se entende com o Executivo, o derruba. O Executivo, se não se entende com o Legislativo, é derrubado. Para não ser derrubado, o Executivo resolve trocar favores com o Legislativo. E, em assim procedendo, vende a alma ao diabo, acabando por se corromper.Voltando ao caso Collor, houve uma guerra de gangues, alimentada pela pressão da opinião pública. Na crise atual, ainda não temos o clamor da opinião pública , o qual é imprescindível para a queda dos governos. Enquanto a opinião pública grita em voz baixa, o Executivo se mantém, fruto da tolerância e da simpatia com as quais ainda cativa o Legislativo.

Tanto o valerioduto quanto as sanguessugas evidenciam que uma máfia vem devastando o cérebro e o coração do nosso Estado. O Executivo e o Legislativo brasileiros vêm sendo conduzidos de maneira a beneficiar interesses privados, sejam eles consubstanciados em interesses individuais ou em interesses de certos partidos políticos. Parafraseando Rousseau, se a máfia estivesse somente no Executivo, o Estado brasileiro estaria imbecilizado. Ocorre que a máfia percorre com a mesma desenvoltura tanto os corredores do Planalto quanto os do Congresso. Desta feita, além de imbecil, o Brasil também é cardiopata. O soberano, por sua vez, mantém-se inerte, incapaz de ir a luta, pois não confia em sua força.

Se Rosseau estivesse vivo, talvez escrevesse em seu blog que é necessária a celebração de um novo pato social.

Me perdoem por esta simplificação dos fatos, não sou versado em ciência política, sou apenas um cidadão curioso e atrevido, que anda profundamente irritado com o que tem assistido na TV Senado.

PS: A quem interessar possa, informo que na terça-feira o Senador Renan Calheiros, Presidente do Senado Federal, indicou três nomes para compor a comissão mista que irá estudar mudanças na tramitação do orçamento. Dentre eles, está o Senador Romero Jucá, do PMDB de Roraima. Lembram dele?

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